fonte: O Globo
por Lígia Bahia, médica sanitarista e professora da UFRJ
Desde sua promulgação, o SUS é subfinanciado. Os esforços de entidades da saúde e do Ministério Público para aproveitar oportunidades de captação de recursos e a vigilância de órgãos de controle dos gastos não conseguiram encher os cofres. Mas os orçamentos da área se tornaram relativamente estáveis e fiscalizados. Um dos itens do repertório de iniciativas voltadas ao bom uso de poucos recursos foi a orientação de emendas parlamentares para as prioridades sanitárias.
O Ministério da Saúde passou a colaborar com o Congresso para incluir no Orçamento emendado investimentos estratégicos para o SUS. Atualmente, metade das emendas é para a saúde. Portanto, negociar aprovação de projetos que dividem o Parlamento com liberação de emendas sob critérios de apoio político-partidário desmonta um equilíbrio precário, obtido a duras penas. Posições contrárias ou favoráveis a governos não deveriam ser parâmetros superiores à alocação do Orçamento de acordo com necessidades populacionais. As velhas desculpas “foi sempre assim” e “aumentar recursos no varejo é melhor do que nada” são meias verdades. Houve tempos nos quais saúde, previdência e assistência social eram consideradas políticas sinérgicas e não alternativas. Momentos marcados pela afirmação das especificidades das políticas de saúde e compreensão de ajustes e desajustes entre saúde e manobras de legitimação de governos.
Agora, o SUS recebeu recursos no varejo e uma promissória de financiamento farto, tão logo sejam efetivadas as novas regras para aposentadorias, pensões e outros auxílios e benefícios. O trocado já entrou no caixa, o grosso viria depois do “enxugamento” da Previdência.
Os meios tortos serviram como justificativa para um SUS finalmente abrangente e de qualidade. Na Esplanada dos Ministérios, em Brasília, está afixado um imenso cartaz com os dizeres “Nova Previdência, investimentos em saúde”. Segundo a propaganda, a reforma da Previdência não tem o propósito de detonar o SUS, pelo contrário. Assim, o uso da saúde como salvaguarda para permutas miúdas seria um aperitivo que antecede a fartura de recursos no futuro. Um “novo” SUS teria como missão evitar que as pessoas que começam a trabalhar muito cedo, com menor renda, adoeçam e morram precocemente. Ficaria para a saúde a tarefa de reduzir escandalosas desigualdades, como a diferença de mais de oito anos entre a expectativa de vida ao nascer no Maranhão ou em Santa Catarina. Qual
seria a abrangência e a diversidade de coberturas assistenciais de um sistema de saúde com tamanha responsabilidade?
O SUS esquálido e capturado por interesses particulares não dá nem para a saída e, por enquanto, a abundância de verbas ficou só no argumento. Em junho, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, declarou: “Sabemos que municípios e estados estão falidos. Não haverá uma solução no curto prazo através deles. Então, se a gente criar uma regulamentação, ou até uma desregulamentação do setor privado, poderemos ampliar a base de brasileiros segurados de 40 para 60, 70 milhões, o que reduz a pressão sobre o SUS” (Podcast, “Resenha com Rodrigo”). O acesso dos parlamentares e seus familiares a todos os procedimentos assistenciais é financiado com recursos públicos. Se os planos que só asseguram Melhoral e copo d’água são uma maravilha, por que os deputados, jovens e longevos, continuam a ser atendidos nos melhores hospitais?
Ter boa assistência à saúde é privilégio ou direito essencial? Em breve será possível tirar a teima. A professora do ensino da rede municipal de Rondônia (expectativa de vida de 74 anos para mulheres) que vai dar aulas por um período prolongado morrerá antes de se aposentar ou viverá muito porque terá salário digno e atendimento de saúde similar ao dos deputados?